sexta-feira, 31 de março de 2017

VELHINHA

Florbela Espanca

Se os que me viram já cheia de graça
Olharem bem de frente para mim,
Talvez, cheios de dor, digam assim:
"Já ela é velha! Como o tempo passa"!..."

Não sei rir e cantar por mais que faça!
Ó minhas mãos talhadas em marfim,
Deixem esse fio de oiro que esvoaça!
Deixem correr a vida até ao fim!

Tenho vinte e três anos! Sou velhinha!
Tenho cabelos brancos e sou crente...
Já murmuro orações... falo sozinha...

E o bando cor-de-rosa dos carinhos
Que tu me fazes, olho-os indulgente,
Como se fosse um bando de netinhos...


sábado, 14 de maio de 2016

O Eu e o tempo, de Henri Bianchi

"Assim, o Eu, como bem sabemos, constrói-se no tempo sucessivo, liberando-se de estados que pertencem a uma outra temporalidade. Assim o Supereu fixa ele mesmo um tempo e uma norma temporal no memento em que, como Freud [Novas conferências introdutórias] escreve, o complexo de Édipo lhe cede o lugar. Assim o Id, por sua parte, pode desempenhar o papel de fonte, capaz de renovar a identidade de uma lógica de sucessão.

Envelhecer não é, portanto, em caso algum, seguir um caminho já traçado, mas pelo contrário construir esse caminho. Antes de tudo, envelhecer não é o 'problema' específico de uma faixa etária, envelhecer diz respeito a todas as idades. Em qualquer idade, não devemos nos esquecer disso, a urgência da vida, pelo menos nesse ponto, é a mesma: trata-se de manter-se vivo, ou seja, em especial, de encontrar 'vias' de expressão adequada às exigências de um desejo cuja ilimitação, porém, deve ser combatida sem cessar.

No entanto, no fim da vida ou na perspectiva de seu termo, a identidade, para se manter, vê-se confrontada com alternativas que implicam no desenvolvimento de um trabalho psíquico sui generis. O Eu deve renunciar a uma certa forma de continuidade - em primeiro lugar, é claro, à biológica - e inventar formas substitutivas: ele estão então confrontado com uma dupla exigência, a da conservação de um sentido dado à própria vida, até o fim, e a da prova de realidade do fim dessa vida. Verificamos então que ele pode buscar a solução desse difícil problema tanto na regressão e no recolhimento narcísico quanto em diversas vias elaborativas. É nesse último caso que a confrontação com a lei do tempo leva à realização de um trabalho psíquico cuja abordagem, convém observar, pode corresponder a diversos modelos. Podemos citar, por exemplo, o modelo da castração simbólica, mas também o do luto, o do desinvestimento do objeto - fatores culturais e, não só estruturais, devem ser levados em conta a esse respeito." (pp. XIV-XV).

Bianchi, H. (1993). O eu e o tempo: psicanálise do tempo e do envelhecimento. (J. Briant, Trad.). São Paulo: Casa do psicólogo. (Obra original publicada em 1987).

segunda-feira, 21 de março de 2016

Autorretrato

Carlos Heitor Cony (em Eu, aos pedaços, 2010)

Até hoje, quando me olho ao espelho, fico assombrado. Então, eu sou aquilo que aparece escovando os dentes, fazendo a barba, verificando o estrago do tempo nos olhos? Sempre fui assim? Ou fui pior ou melhor?

Quando escovo os dentes, por exemplo, sinto o gosto da infância que nunca foi embora, que me persegue e, em certo sentido, me ameaça. Não pedi para nascer e muito menos para crescer. Não tenho nada com o adulto que substituiu a criança espantada diante do mundo, gostando do mundo e
temendo-o. Fugindo do mundo e querendo ser dele.

Não sou nostálgico, tenho até aversão aos nostálgicos. Sou melancólico - o que é outra coisa, apesar de parecida. Em criança, gostava das histórias em que um menino partia para conhecer o mundo, envolvia-se com os outros, o gigante que morava no castelo, o duende que morava na floresta, a bruxa de olhos verdes que tinha um cesta de maçãs (como na história da Branca de Neve), a fada que não tinha rosto, silhueta apenas, que apesar de tudo me protegia. Gostando ou não dessa gente, eu não perdia a noção de que estava cumprindo um destino, uma missão: conhecer o mundo. Um dia voltaria para dentro de mim, farto dos outros, farto de mim mesmo. A busca transformou- se num retorno - por isso, talvez, minha atividade mais constante é escrever. Um gesto tão infantil como o de escovar os dentes, sentir na boca o gosto da espuma crescendo. Um rito infantil que talvez nunca tenha mudado, é sempre o mesmo.

Daí a pouca ou nenhuma importância que dou ao adulto que me sucedeu. É um farsante. Finge levar a vida com a seriedade possível, mas está louco para que a missão acabe e ele possa voltar a ser o menino que cresceu contra a vontade. Por isso, foi mudo até os cinco anos, não conseguia pronunciar nenhuma palavra, nenhum som articulado. E, quando falou, falou errado. Trocava as letras, até os quinze anos tropeçava nas palavras. Fez testes (científicos na época) para avaliar o grau de sua dormência mental. No fundo, ele até que se distraía: falar errado ou nada falar era um recurso para não assumir a vida que não quis nem pediu.

Até que fingiu bem. Entre mortos e feridos, teve seus momentos. Mais do que merecia ou precisava. Mesmo assim, nunca soube aproveitá-los. Aos outros, sempre deu a impressão de não estar ali, de estar indo para outro lugar, aflito para ir embora e chegar a um lugar indeterminado onde não é esperado. Mas não importa. A convulsão de ir e de nunca chegar é um truque que ele aprendeu sem querer.

Seria impossível viver sem esse truque. O menino mudo até os cinco anos só falou quando levou um susto. Sua primeira palavra foi um grito. Prometeu-se nunca mais gritar, ainda que o preço do não grito fosse a palavra finalmente falada ou confusamente escrita. O menino encontrou um ofício mas não um destino.

domingo, 6 de março de 2016

Durante o segundo semestre de 2015, lemos e discutimos dois ensaios do sociólogo alemão Norbert Elias: "A solidão dos moribundos" e "Envelhecer e morrer". Segue uma resenha publicada na Revista da UFG, Vol. 5, No. 2, de dezembro 2003 (www.proec.ufg.br).


ENVELHECIMENTO, EXCLUSÃO E MORTE: RESENHA DO LIVRO A SOLIDÃO DOS MORIBUNDOS... DE NORBERT ELIAS

Cristina Borges de Oliveira
Rúbia-Mar Nunes Pinto
 
O livro é composto por dois ensaios sendo que no primeiro, A solidão dos Moribundos, Elias aborda o processo civilizatório da sociedade e dos indivíduos e os modos por meio dos quais se instalam, em cada um, os sentimento de constrangimento, medo e embaraço em relação a tudo que lembre a finitude da vida biológica. O segundo ensaio, Envelhecer e Morrer, é uma versão revista de uma conferência médica em 1983 e aborda, especialmente, o isolamento dos velhos e moribundos em asilos, hospitais e clínicas de saúde.  O livro possui uma linguagem tranqüila de se compreender e o autor discorre sobre nossos medos mais profundos e, muitas vezes, velados por nossos mecanismos de defesa e auto-controle, abordando a solidão dos moribundos no contexto da sociologia figuracional.

Elias propõe várias reflexões que permeiam a questão da solidão dos moribundos sendo que em uma delas é oportuno ressaltar aqui: “Seria falso sugerir que os problemas específicos do estágio da civilização na relação dos saudáveis com os moribundos, dos vivos com os mortos, são um dado isolado. O que surge aqui é um problema parcial, um aspecto de um problema geral da civilização em seu estágio presente (p.32)”. Elias aponta, com bastante propriedade ao longo dessa obra, que se faz mister entender a questão central do isolamento dos moribundos a partir da compreensão da mudança que acompanha os distintos estágios alcançados pelo desenvolvimento da humanidade.

Assim, o problema da morte e do envelhecimento  – e em conseqüência, o problema do abandono e exclusão dos velhos - somente podem ser compreendidos a partir da noção de que a experiência da morte varia de uma sociedade para outra e que, portanto, tal experiência foi/é apreendida não sendo, pois, algo natural e/ou universal. Não é exatamente o fato biológico de morrer que varia uma vez que essa experiência é um dado inevitável da vida biológica, experiência corriqueira em todas as espécies vivas e em todos os momentos do processo civilizatório. O que varia é a consciência da morte, a qual é possível somente para os seres humanos. É essa consciência que se transforma no curso do desenvolvimento social.

O sociólogo alemão afirma que a problemática em questão não é só a morte, mas, principalmente, o significado de partida antecipada que assume o envelhecimento nas sociedades industrializadas. De acordo com o autor de A Solidão dos Moribundos, a maneira mais antiga dos humanos enfrentarem o fim da vida é evitando a idéia da morte, afastando e reprimindo tal pensamento ou incorporando a fé inabalável na imortalidade. Sob este ponto de vista, o velho, o moribundo representa uma clara evidência da finitude da vida. Evento que os seres humanos modernos parecem não aceitar. O medo de morrer, o pavor do fim da vida é o sentimento que, fragilizando as pessoas, faz com que se estabeleça o afastamento dos velhos e moribundos separando as pessoas que envelhecem das outras.

Elias (p. 19) destaca que, nas sociedades modernas, a morte é vista como um dos maiores perigos biopsicossociais na vida dos indivíduos. Nessas sociedades, a morte sempre aparece como uma violência e, por isso, vai sendo empurrada para os bastidores da vida social. Em outros momentos da civilização, como na Idade Média, pode-se perceber que a morte era muito menos oculta, mais presente e familiar, embora, não mais pacífica. O espetáculo da morte, inclusive, provocava sentimentos de prazer, alegria e catarse nos indivíduos, os quais eram sustentados pela ausência de identificação entre aqueles que morriam e os que assistiam ou promoviam sua morte.

Elias afirma que a exclusão dos moribundos ocorre com maior incidência nas sociedades mais avançadas porque nessas sociedades existe um espaço de identificação social maior do que em outros tempos históricos. Isto quer dizer que somos, atualmente, muito mais sensíveis em relação ao sofrimento e ao espetáculo da morte do que os homens e mulheres que viveram na Antiguidade e na Idade Média. “Se compararmos aos da Antiguidade, nossa identificação com outras pessoas e nosso compartilhamento de seus sofrimentos e morte aumentaram (p.9)”. Essa identificação acaba por instalar, nas pessoas, um sentimento de desconforto e constrangimento diante dos que envelhecem e morrem e, finalmente, provocar o rompimento dos laços afetivos do velho com as pessoas com as quais ele se relacionou, às vezes, por toda a vida.

Pensando nos velhos e moribundos, isso significa que, atualmente, eles também são empurrados para os bastidores e excluídos do convívio social. Os cuidados e a proteção dos velhos e moribundos, antes atribuição da família e circulo de amigos e vizinhos, foi sendo transferido para a esfera estatal e, cada vez mais, pautado pelo conhecimento científico. O convívio com parentes, amigos e vizinhos nestes contextos pode ser, inclusive, proibido ou dificultado por interferirem no trabalho dos profissionais da saúde. Nesse processo, o velho é isolado do contato social com pessoas com as quais, às vezes, conviveu por grande parte de sua vida. Assim, a rede de atendimento institucional aos idosos, sustentando-se na possibilidade de retardamento da morte biológica, afasta familiares e parentes e provoca uma espécie de morte social do velho.

O que Elias nos instiga a pensar é que a aversão dos adultos contemporâneos a tudo aquilo que lembre a idéia da morte é uma característica da homogeneidade do padrão dominante do atual estágio da civilização. Relembra nossos medos de infância e de como a morte aparece em associação com o assassinato e que as fantasias e ritos individuais e coletivos em torno da morte são, em sua grande maioria, assustadores. Como conseqüência, muitas pessoas, especialmente ao envelheceram, vivem secreta ou abertamente em constante terror da morte. A angustia, a depressão e o sofrimento, causados por essas fantasias e pelo medo da morrer, podem ser tão intensos, as fantasias podem ser tão reais quanto à dor física de um corpo em deterioração.

Encobrir a morte da consciência é, reconhece Elias, uma tendência muito antiga na história da humanidade, porém, mudaram os modos usados para esse encobrimento. Se antes, as pessoas recorriam com mais paixão e intensidade à idéia da continuidade da vida em outro lugar – fantasia coletiva ainda significativa – atualmente, os avanços científicos que permitem o prolongamento da vida e a possibilidade de institucionalizar os cuidados com os velhos e moribundos, são as formas mais comuns para encobrir o processo de envelhecer e morrer.

Elias conclui essa obra reafirmando que a morte biológica não é o maior pesadelo. O pior pode ser a dor dos moribundos e a incomensurável  perda sofrida pelos vivos quando morre uma pessoa amada. A grande tarefa que ainda temos pela frente, de acordo com Elias, é enfrentar os terrores que, emocionalmente, alimentamos sobre envelhecer e morrer opondo-lhes a realidade de uma vida biológica que tem fim. Nas palavras do autor: “A morte não tem segredos. Não abre portas. É o fim de uma pessoa. O que sobrevive é o que ela ou ele deram às outras pessoas, o que permanece na memória alheias” (p.77)

Elias nos leva a refletir sobre os inúmeros terrores que envolvem o fato de envelhecer e morrer ressalvando, no entanto, que o constrangimento social e a áurea de desconforto que, freqüentemente, cerca a esfera da morte em nossos dias é de pouca serventia para uma mudança de valores e atitudes frente à questão. O que poderia ser feito para assegurar às pessoas maneiras fáceis e pacíficas de morrer ainda está por ser descoberto, mas existem alguns meios para se mudar a atitude frente à morte: a amizade e solidariedade dos vivos e o “sentimento dos moribundos de que não causam embaraço aos vivos (p.76)”.

Concluindo, o livro do sociólogo alemão Norbert Elias apresenta-se interessante para o pensamento educacional brasileiro, principalmente, por propor uma ampliação das explicações conhecidas sobre o isolamento dos velhos e dos moribundos nas sociedades urbanas. Em especial, o livro nos permite entender que o abandono e isolamento dos idosos em nossa sociedade não podem ser explicados unicamente a partir da idéia de que idoso é improdutivo economicamente. É preciso, então, considerar os aspectos emocionais que interferem no abandono dos velhos e moribundos.  Neste sentido, é preciso que compreendamos aquilo que Elias chama de auto-imagem - o modo como as pessoas se vêem, se percebem - do ser humano que vive nas modernas sociedades industrializadas e urbanas e que não inclui a idéia do envelhecimento e da morte.

O afastamento dos velhos e moribundos do convívio social é o sinal mais evidente da não-identificação entre os jovens e os que estão envelhecendo e morrendo. Se essa não-identificação é apreendida, pode também ser alterada, o que coloca um papel fundamental para a educação das novas gerações. Atualmente, o pavor da morte e de tudo que lhe é associado é ensinado, muito cedo, às crianças. Os pais e professores evitam falar da morte, de pessoas que morrem ou estão morrendo, as crianças, às vezes, são impedidas de verem pessoas mortas e de vivenciarem as emoções provocadas pela morte. A possibilidade de transformar a relação dos jovens com os velhos e moribundos passa, necessariamente, pela superação do ocultamento da morte durante a infância, bem como pela inserção da criança em relações afetuosas e de amizade com as pessoas que se encontram próximas do fim da vida.

Referência Bibliográfica

Elias, Norbert. A solidão dos moribundos seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro/RJ: Jorge Zahar, 2001

1Professora Ms. - Delegacia Regional no Estado de Goiás da Sociedade Brasileira de Atividade Motora Adaptada
2 Professora Ms. da Faculdade de Educação Física / UFG

quinta-feira, 3 de março de 2016

Um dos textos discutidos durante o último semestre foi "A transitoriedade" escrito por Freud em 1916 e que tece reflexões bem interessantes para o estudo da velhice.

A TRANSITORIEDADE (1916)

TRADUÇÃO DE PAULO CÉSAR DE SOUZA PUBLICADA ORIGINALMENTE NO JORNAL FOLHA DE S. PAULO, EM 23 DE SETEMBRO DE 1989, Caderno Letras.

Algum tempo atrás, fiz um passeio por uma rica paisagem num dia de verão, em companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem, mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário que nos rodeava, porém não se alegrava com ela. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava condenada à extinção, pois desapareceria no inverno, e assim também toda a beleza humana e tudo de belo e nobre que os homens criaram ou poderiam criar. Tudo o mais que, de outro modo, ele teria amado e admirado, lhe parecia despojado de valor pela transitoriedade que era o destino de tudo.
Sabemos que tal preocupação com a fragilidade do que é belo e perfeito pode dar origem a duas diferentes tendências na psique. Uma conduz ao doloroso cansaço do mundo mostrado pelo jovem poeta; a outra, à rebelião contra o fato constatado. Não, não é possível que todas essas maravilhas da natureza e da arte, do nosso mundo de sentimentos e do mundo lá fora, venham realmente a se desfazer em nada. Seria uma insensatez e uma blasfêmia acreditar nisso. Essas coisas têm de poder subsistir de alguma forma, subtraídas às influências destruidoras.

Ocorre que essa exigência de imortalidade é tão claramente um produto de nossos desejos que não pode reivindicar valor de realidade. Também o que é doloroso pode ser verdadeiro. Eu não pude me decidir a refutar a transitoriedade universal, nem obter uma exceção para o belo e o perfeito. Mas contestei a visão do poeta pessimista, de que a transitoriedade do belo implica sua desvalorização.

Pelo contrário, significa maior valorização! Valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo. A limitação da possibilidade da fruição aumenta a sua preciosidade. É incompreensível, afirmei, que a ideia da transitoriedade do belo deva perturbar a alegria que ele nos proporciona. Quanto à beleza da natureza, ela sempre volta depois que é destruída pelo inverno, e esse retorno bem pode ser considerado eterno, em relação ao nosso tempo de vida. Vemos desaparecer a beleza do rosto e do corpo humanos no curso de nossa vida, mas essa brevidade lhes acrescenta mais um encanto. Se existir uma flor que floresça apenas uma noite, ela não nos parecerá menos formosa por isso. Tampouco posso compreender por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam ser depreciadas por sua limitação no tempo. Talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos se reduzam a pó, ou que nos suceda uma raça de homens que não mais entenda as obras de nossos poetas e pensadores, ou que sobrevenha uma era geológica em que os seres vivos deixem de existir sobre a Terra; mas se o valor de tudo quanto é belo e perfeito é determinado somente por seu significado para a nossa vida emocional, não precisa sobreviver a ela, e portanto independe da duração absoluta.

Essas considerações me pareceram incontestáveis, mas notei que não produziam impressão no poeta e no amigo. O fracasso me levou a concluir que um poderoso fator emocional estava em ação, perturbando o julgamento deles, e depois acreditei que eu tinha encontrado. Deve ter sido uma revolta psíquica contra o luto, o que depreciava para eles a fruição do belo. Imaginar que essa beleza é transitória deu àqueles seres sensíveis um gosto antecipado do luto pela sua ruína, e como a psique recua instintivamente diante de tudo que é doloroso, eles sentiram o seu gozo da beleza prejudicado pelo pensamento de sua transitoriedade.

Para o leigo, o luto pela perda de algo que amamos ou admiramos parece tão natural, que ele o considera evidente por si mesmo. Para o psicólogo, porém, o luto é um grande enigma, um desses
fenômenos que em si não são explicados, mas a que se relacionam outras coisas obscuras. Nós possuímos — assim imaginamos — uma certa medida de capacidade amorosa, chamada libido, que no começo do desenvolvimento se dirigia para o próprio Eu. Depois, mas ainda bastante cedo, ela se dirige para os objetos, os quais, por assim dizer, incorporamos em nosso Eu. Se os objetos são destruídos, ou se os perdemos, nossa capacidade amorosa (libido) é novamente liberada; pode então recorrer a outros objetos em substituição, ou regressar temporariamente ao Eu. Mas por que esse desprendimento da libido de seus objetos deve ser um processo tão doloroso, isso não compreendemos, e não conseguimos explicar por nenhuma hipótese até o momento. Só percebemos que a libido se apega a seus objetos e, mesmo quando dispõe de substitutos, não renuncia àqueles perdidos. Isso, portanto, é o luto.

A conversa com o poeta aconteceu no verão antes da guerra. Um ano depois rompeu a guerra e despojou o mundo de suas belezas. Destruiu não só a beleza das paisagens por onde passou e as obras de arte que deparou no caminho, mas destroçou também nosso orgulho pelas realizações da cultura, nosso respeito por tantos pensadores e artistas, nossa esperança de uma superação final das diferenças entre povos e raças. Maculou a altiva imparcialidade de nossa ciência, mostrou nossa vida instintiva em toda a sua nudez, libertou os maus espíritos que existem em nós, os que julgávamos domados para sempre, por séculos de educação através das mentes mais nobres. Tornou nosso país novamente pequeno e o resto do mundo novamente distante. Despojou-nos de muitas coisas que amávamos, e revelou a fragilidade de tantas outras que acreditávamos sólidas.

Não é de estranhar que a nossa libido, tão empobrecida de objetos, tenha se ligado com intensidade tanto maior àquilo que nos restou, que o amor à pátria, a ternura pelos mais próximos e o orgulho pelo que temos em comum tenham se fortalecido subitamente. E aqueles outros bens agora perdidos tornaram-se realmente sem valor para nós, por terem se revelado tão frágeis e sem resistência? Muitos entre nós pensam assim; mas injustamente, afirmo outra vez. Creio que os que têm essa opinião e parecem dispostos a uma renúncia permanente, já que o precioso não demonstrou ser durável, acham-se apenas em estado de luto pela perda. Sabemos que o luto, por mais doloroso que seja, acaba naturalmente. Tendo renunciado a tudo que perdeu, ele terá consumido também a si mesmo, e nossa libido estará novamente livre — se ainda somos jovens e vigorosos — para substituir os objetos perdidos por outros novos, possivelmente tão ou mais preciosos que aqueles. Cabe esperar que não seja diferente com as perdas dessa guerra. Superado o luto, perceberemos que a nossa elevada estima dos bens culturais não sofreu com a descoberta da sua precariedade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de modo mais duradouro do que antes.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Quantos anos tenho?
José Saramago

Tenho a idade em que as coisas são vistas com mais calma, mas com o interesse de seguir crescendo.

Tenho os anos em que os sonhos começam trocar carinhos com os dedos e as ilusões se transformam em esperança.

Tenho os anos em que o amor, às vezes, é uma chama louca, ansiosa para se consumir no fogo de uma paixão desejada. E em outras, uma corrente de paz, como um entardecer na praia.

Quantos anos eu tenho? Não preciso de números para marcar, pois meus anseios alcançados, as lágrimas que derramei pelo caminho, ao ver meus sonhos destruídos…
Valem muito mais que isso.

Não importa se faço vinte, quarenta ou sessenta!
O que importa é a idade que eu sinto.

Tenho os anos de que preciso para viver livre e sem medos.
Para seguir sem medo pelo caminho, pois levo comigo a experiência adquirida e a força de meus anseios.

Quantos anos tenho? Isso não importa a ninguém!
Tenho os anos necessários para perder o medo e fazer o que quero e sinto.
– José Saramago –